quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Queria ser intelectual

Ela sentiu uma coisa inexplicável quando ouviu aquela mulher culta falando coisas tão lindas e profundas num programa de TV. Na verdade, ela não entendia muito do que as pessoas diziam naquele programa semanal, mas percebia que era diferente da programação que passa todos os dias em todos os canais.
Ficava extasiada com a possibilidade de um dia conversar sobre assuntos tão interessantes, complexos e profundos.  A cada fim de semana era um convidado diferente. Sempre gente com formação muito específica, muito profunda: doutores, mestres e pensadores. Uma vez ouviu um distinto estudioso falar sobre inconsciente, outra vez uma professora fez observações sobre comportamento sexual nas redes sociais. E ainda teve aquele ator de teatro, que disse coisas bonitas sobre a expressão artística.  E agora aquela mulher, uma doutora em história da arte! Ela tinha uns óculos bonitos, gesticulava de uma forma envolvente. Não dava para entender muito bem o que ela dizia, mas que as palavras eram bonitas, ah, isso eram! As pessoas da plateia anotavam tudo com muito entusiasmo. Havia uma taça de vinho sobre a mesa onde ficavam as anotações da convidada. Embora ela não tivesse levado a taça até a boca nenhuma vez, aquilo era muito bonito, muito elegante! A mulher do programa de TV tinha mais ou menos a sua idade. Mais bem vestida e mais magra, mas a idade era próxima. Talvez 45 anos.
Então ela decidiu que se tornaria uma pessoa que sabe falar coisas bonitas e interessantes. Mas como, se ela não conhecia o que estava escrito nos livros e nem aquelas palavras de dicionário?! Já sabia! Ela iria estudar todas as noites, a partir daquela. Começaria a ler livros, a conversar com aquelas pessoas que costumava ver num café perto da universidade por onde passava todos os dias quando ia para o trabalho. Estava decidido! Seria como a mulher do programa de TV!
Na manhã seguinte acordou cedo e foi para o trabalho. Às sete e meia da manhã estava empacotando frangos no abatedouro. Durante o almoço já sentia cansaço, mas voltou ao trabalho empolgada, porque no fim da tarde tudo começaria. Passou em frente a um “sebo”, desses que vendem livros usados. Não sabia qual comprar: Astrologia, poesia, filosofia. Tinha que ser um baratinho. Melhor não! Os cinco reais que tinha deveriam ser usados para comprar pão e leite para o café da manhã da família do dia seguinte. Foi embora. Ao chegar em casa preparou o jantar, passou as roupas acumuladas e deu um pouco de atenção ao filho de sete anos que estava gripado.  Já passava das onze e meia, e, com muita dor nas costas, foi para a cama. No dia seguinte pensou:
- Quando sair do trabalho tentarei falar com aquelas pessoas da cafeteria! Posso falar das eleições presidenciais! Mas desistiu ao chegar à porta da cafeteria e perceber que estava com cheiro de frango. Além do mais, não sabia a diferença entre partidos políticos. Só sabia que as letrinhas de um e de outro eram diferentes. Então foi para casa, fez o jantar, lavou as roupas e passou um pano no chão. Já passava da meia noite. Ela se lembrou dos frangos que empacotaria no dia seguinte... e adormeceu.

3 comentários:

  1. Achei magnífico! O seu ponto de vista está sujo de teoria, encardido de AD, e isso deixa a sua escrita com uma criticidade ímpar! Reflete sua maturidade. Acho que escrever vai ser um belo exercício para você, amiga! Adorei o conto/crônica. Lendo, fiquei pensando que na cafeteria pode ser que tenha gente cheirando outros tipos de frango tentando falar também palavras difíceis. Esse mestrado foi um belo de um banho para mim, quase tirou meu fedor. Esse nível de reflexão não se encontra por aí, de graça e à toa. Poupe nossa existência do seu silêncio bloguístico e bota tudo pra fora que eu quero devorar seus textos!

    ResponderExcluir
  2. Nossa! Agora vc encheu a minha bola! Fico super feliz com a sua aprovação porque você não é qualquer leitor. É um leitor de peso, um cara que adimiro pelas coisas que pensa e defende.
    Thanks, meu amigo!!!!

    ResponderExcluir
  3. sabe que esse conto tem um tempero de Clarice? euy li um conto dela que é de uma mulher que foge durante a noite da vida que tem e no fim da fuga ela volta pra casa, derrotada pelos próprios planos... eu gostei muito desse conto e por isso marcou muito para mim. agora estou aqui diante da mesma sensação... um aborto de vontade, não por falta de tentar, mas por estar socialmente podado.

    ResponderExcluir